quinta-feira, 24 de julho de 2008

Um hino à ignorância

Não sou lá muito dado a perder tempo na televisão em canal aberto. Acho um desperdício ocupar uma boa parte da vida que me resta embasbacado a ver aquela supostamenta divertida - mas modorrenta - obtusidade. Mas hoje acabei por ver um concurso da RTP1, o “Não sei mais do que um miúdo de 10 anos”.
Havia um fulano com pronúncia nortenha e postura a dar para o pintas moderno que respondia a questões que aprendemos na escola primária mas que já vivemos o suficiente para esquecer (o que, mais uma vez, dá razão à opinião geral de que aquilo que aprendemos na escola não serve para nada, como se verá adiante). Só sei que esse concorrente se chamava João. Não o vi de início, mas vi o suficiente para o ouvir hesitar na questão “o que leva o sangue carregado de dióxido carbono ao coração?”. Ora a resposta que pareceu óbvia ao João foi “aurículas”, mas o apresentador deu-lhe a entender que… enfim… e ele respondeu então, agora peremptoriamente, “artérias!”. Num esquema que permite os alunos crianças salvar os adultos, lá continuou em jogo… A parte que mais gostei foi quando teve de contar as arestas de um cubo.Ora quantas arestas tem um cubo? Pensou alto e distinguiu as arestas dos vértices, dizendo, e muito bem, que as arestas unem os vértices. Depois contou-as mentalmente, o que deu o complicado número de 22! Não percebi como, mas enfim... Mais uma vez foi salvo porque “copiou” (o que se pode fazer nesta escola da RTP, não é crime nenhum, faz até parte das regras do jogo). Finalmente, acabaria por perder na pergunta “quais os dois planetas do sistema solar que não têm satélites?”. Não me admira que o João não soubesse a resposta, a pergunta não é simples. Mas mesmo assim espantou-me o facto do senhor ao enumerar os planetas do sistema solar se “esquecer” sempre de Mercúrio e Vénus, começando logo pela terra (razão da vaga de calor, certamente). Tudo isto, que aqui narro, aconteceu num espaço de 5 questões (mais uma vez recordo que não vi de início). Enfim, um concorrente que voluntariamente foi à RTP fazer jus de toda a sua ignorância estupidez. Sempre divertido. Estupidez premiada, diga-se, pois ainda assim arrecadou 1500 euros (mais do que eu, professor com 17 anos de serviço, recebo por mês). Vale a pena pavonear despreocupadamente a ignorância e fazer alarido dela. Sempre se tem direito a uns minutos de fama televisiva, o que dará boas conversas lá na terra, e o resto é apenas questão de sorte, pode ser que caiam uns trocados para ajudar o gasoil ou aliviar alguma prestação mais premente.
Recordei-me dos concursos da minha infância, desde logo a “vaca Cornélia”. Aí premiava-se o talento e o conhecimento. Meu Deus, o que aconteceu a este país (e a este mundo)? Divertimo-nos a ver o que os outros não sabem, eles divertem-se a dizer asneiras, a arrecadar uns eurozinhos e tudo sempre com muitas palmas, palmas quando o concorrente entra, palmas quando acerta, palmas quando erra, palmas quando hesita, palmas quando escolhe as ajudas, palmas quando se vai embora, palmas e mais palmas, porreiro,pá!, tudo para nos entusiasmar, ai que estamos a ver um concurso tão interessante, realmente o que nos lembramos da escola, não é?, e aquele tipo está cá com um azar, perguntarem aquelas coisas do sangue e dos cubos (será dos cubos de gelo?) e de planetas e dos satélites, que coisas complicadas, felizmente eu não tive que saber isso que a minha professora não nos chateava com essas coisas, era só saber escrever o nome e pouco mais.
Mas afinal os concursos da TV apenas reproduzem em microcosmos o estado da nossa educação. De nada vale já o saber. Aliás, agora o ensino é por “competências”, pressupondo-se que não é preciso o conhecimento para desenvolver essas competências, como ficou demonstrado há uma semana atrás quando o primeiro-ministro, que não sabia quanto pagavam de imposto os veículos a electricidade, teve competência para negociar com uma grande empresa internacional – a Renault Nissan –, um benefício fiscal altamente favorável. Palavras para quê? È um produto da nova escola portuguesa!

2 comentários:

Luís Bonito disse...

Caro Fernado Évora:
O tema que abordaste neste comentário é muito importante.
Não vou falar de concursos. Vou apenas falar de cabulanço. Da política do cabulanço instalado, e aceite, ao que parece pela maioria, como uma forma de chico-esperteza (sem querer desprestigiar os chicos do mundo).
Quanto aos concursos caberá dar um exemplo entre muitos. Aqui há uns anos naquele concurso tipo “Quem quer ser milionário?” lembro-me de os concorrentes quando não sabiam ficarem à espera da ajuda do apresentador, ou de alguém do público, ou quem sabe até de alguma ajuda divina que caísse do céu...
Essa atitude pude observar ao longo de anos nos muitos exames com provas orais que presenciei em diversos níveis de ensino.
Entre muitas, tenho uma história inesquecil e cómica. Num curso profissional cujos alunos eram todos adultos, alguns com mais idade do que eu, em certo dia de prova escrita, fui dispondo alguns alunos estrategicamente pela sala, consoante os zuns-zuns soavam. O melhor aluno foi colocado na secretária do professor bem longe de qualquer colega. Lembro-me bem que as mesas eram quase todas para 2 alunos cada, e por isso uma parte do teste de resposta múltipla tinha várias versões de modo a tornar os testes diferentes. Mas havia uma fiada de mesas junto à parede que tinha mesas individuais para melhor aproveitamento do espaço. As mesas eram de um material tipo fórmica esverdeada,e tinham algum brilho.
Por isso quando eu passeava pela sala observando os trabalhos, consegui descortinar lá ao longe que uma das mesas tinha algo escrito no seu tampo. E para lá me dirigi, inquirindo o aluno: “O que é que tem aí escrito na mesa?”. Há medida que me aproximava do local o dito aluno (adulto) largou a esferográfica e pegou nas duas mãos que tinha (se mais houvesse melhhor seria!) e começou a esfregar no tampo da mesa para destruir as provas do “crime”. O espectáculo era cómico e triste ao mesmo tempo. Ele a negar (como bom português, que nega sempre) e a dizer: “Nada! Nada!” mas com as mão cheias do carvão do lápis e a mesa borrada com uma nuvem escura de carvão, podendo ainda vislumbrar-se algumas letras alusivas à cábula semi-fixa.
É uma entre muitas história caricatas, de tentativa de sobrevivência por insufuciência. Insuficiência de saber e de carácter.
E o problema é que o cabulanço instalou-se e é aceite entre os pares. Pelos alunos e atrevo-me a dizer que muitos professores nem querem saber para não terem problemas.
E continua ao longo da vida. Sendo no meu entender uma das causas da mediocridade. Na profissão, nos concursos, na política, etc. Não quero dizer que antigamente não havia cabulanço. Mas certamente que havia muito menos e o mais importante é que era reprovável e reprovado pelos pares. Era ruim, e os alunos sabiam que poderiam ser expulsos por essa razão.
Um colega de profissão que tinha estudado na Escola Alemã em Lisboa disse-me que se um aluno fosse apanhado a copiar o mais certo era sofrer o ostracismo dos restantes colegas. Anos mais tarde pude comprovar uma atitude semelhante num curso nos Estados Unidos da América. Cabular era uma coisa muito grave. E é, só que parece que em Portugal não é.
Para quê estarmos a ter tanto trabalho com testes e quantificá-los se porventura os resultados são falseados pelo cabulanço.
Como reverso da medalha, estava eu, vai para 3 anos, a ouvir rádio de manhã, num dos canais de maior audiência e o jeitoso do programa convida os ouvintes a enviarem ou contarem as experiências engraçadas que tiveram a fazer cábulas no seu tempo de escola. Uma verdadeira gracinha! Claro que enviei um email a protestar mas apenas uma pequena parte dos meus comentários foi lida na emissão que estava no ar.
Caro Fernando Évora, o teu título é muito bom: Hino à ignorância. O problema não é só este hino dos concursos, mas todos os outros hinos à ignorância, e alguns cantados por pessoas muito responsáveis e importantes.
Um abraço,

Post Scriptum – gostaria de enviar um email ao teu amigo Sérgio Patinha mas não consigo descobrir o email dele. És capaz de me ajudar? :-)

Luís Bonito disse...

Desculpa lá. Afinal já descobri o email do Sérgio Patinha. :-)