quarta-feira, 16 de abril de 2008

Debaixo do telhado que um dia foi o do Gato Esteves

É Abril e não me augurou nada de bom aquela conversa entre o Rochinha e a Tia Evangelista. Sobretudo quando vi a senhora partir rua fora com ar triste e sacada na mão. Não sei se voltará mais à cave deste telhado.
Debaixo do telhado que foi um dia o do Gato Esteves já não é a taberna em que todos os dias a Dona Inácia Roxo cozinhava os seus carapaus, umas vezes fritos outros de escabeche, que a mulher bem que sabia poupar e aproveitar. Desses tempos outros vieram e os da Dona Inácia aproveitaram-se para ir andando para outro sítio, com muita pena da senhora e do senhor seu marido. Quando se tratou de vender o estabelecimento (muito gostou o Roxo deste nome quando foi para vender: estabelecimento, é tão ... comercial!) não apareceram muitos interessados, se bem que o Rodrigo Capitão (neto do Sr. Capitão, o defunto reformado dos correios) ainda medeou um suposto interesse de uma imobiliária e até de um banco. Mas o casal Roxo publicitou a todos que o dinheiro não é tudo e acabou por se contentar em vender ao Rochinha, que entretanto se tinha casado com a Julinha, antiga empregada da casa, na condição de estes manterem o estabelecimento próximo ao que era, que lhes dava pena verem o seu estabelecimento transformado, e além disso havia um dever de lealdade a cumprir para com a clientela de semelhante estabelecimento, o que iria ela fazer se a taberna se transformasse numa pizzeria ou numa pastelaria queque?
É verdade que o Rochinha procedeu a algumas modificações: os azulejos da parede ganharam colorido, os posteres com as mulheres de mamas descomunais foram substituídos por calendários apelativos de empresas de reconhecido valor multinacional, as antigas mesas de madeira, todas riscadas e gravadas pelo uso, foram trocadas por umas de plástico oferecidas por marca de refrigerantes que os compromissos publicitários não me deixam referir. E, claro, o nome taberna também tinha que ser alterado, pois estabelecimento novo que se chame taberna ou tasca tem que ser coisa fina e com preços condicentes, o que o Rochinha não almejava. Parece que não lhe aceitaram "Estabelecimento do Rochinha" e acabou por optar por “Snack-bar da Julinha”, sendo sabido que tal designação – snack-bar –, era moderna pelos padrões dos anos sessenta e setenta, mas agora caiu definitivamente em desuso (eu, aliás, não me consigo lembrar de um snack-bar que tenha tido particular sucesso, mas deve ser da minha falta de cultura de restauração e petisqueiras). Enfim, a antiga taberna que fica por baixo daquele que um dia foi o telhado do Gato Esteves está um pouco mais actual (que não moderna, entenda-se) e de acordo com as normas que têm vindo a ser recentemente objecto de intensa legislação reformista com vista a fazer de Portugal um exemplo de imaculado asseio e esterilização nacionais. E o facto é que tem sobrevivido a umas visitas dos senhores da Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (se bem que aquele constante cheiro a transpiração já um bocado azeda que a Julinha transporta deixe dúvidas no que respeita à salubridade geral). Mas a essas histórias – os da nova vida deste estabelecimento infelizmente chamado “snack-bar” -, voltarei noutro dia. É que não queria alongar-me muito mais neste post, pois os leitores dos blogues são pessoas de vida atarefada e sedentos de informação compactada, com tendência para ignorar as escritas de muitas linhas e que não realizem exercícios de raciocínio com final cáustico (dois defeitos que terá este pequeno texto).
É que é Abril – disse-o eu e sabe-o o leitor –, e fiquei preocupado com o meu futuro próximo quando vi a Ti Evangelista ir embora depois da conversa com o Rochinha. A Ti Evangelista levava na mão a sacada de caracóis que ela mesmo apanha e cozinha. E que antigamente trazia para gáudio de todos nós, freguesia do Roxo, que assim desenjoávamos dos carapaus fritos e de escabeche da Dona Inácia. Esta senhora chamada Evangelista é mulher dos tempos dos Roxos e esses tempos já se foram embora. Não tem contabilidade organizada nem obedece às novas normas de segurança alimentar. Agora que há tantos petiscos novos neste snack-bar logo me havia de dar as saudades dos caracóis da Ti Evangelista. Queremos sempre o que não temos (ou estou a ficar um velho jarreta e saudosista). Acho, pois, que vou apanhar caracóis.
Ou fazer uma visita à Ti Evangelista.
Até lá, então.

1 comentário:

Luís Bonito disse...

Caro Fernando Jorge:
Textos destes (e dos outros também) podes escrever sempre!
Nunca são extensos demais; e são verdadeiros pitéus para nos deliciarmos a ler.

De repente dei por mim a imaginar a ASAE a proibir os donos de todos os Gatos Esteves de darem restos de comida aos animais... só enlatados, dentro da garantia!

Um abraço,