terça-feira, 13 de maio de 2008

Anda um frémito pelas 9:35 da noite debaixo do telhado que um dia foi o do Gato Esteves

O snack-bar da Julinha ganhou um novo frémito nesta primavera. Tudo acontece, de forma mais ou menos pontual, às 9:35 de cada noite, quando um bando de mulheres de várias nacionalidades e diferentes pronúncias entra por ali adentro e se distribui pelo balcão e escarrachapa nas mesas sobejantes a tomar o seu café. Os homens que as acompanham – 3 fulanos de bigode, gel e sapatilha doirada - , acompanham o cafezinho com o whiskey da ordem, que bebem de trago, e no fim, aquando do pagar da conta, deixam generosa gorjeta à Julinha, acompanhada de um piscar de olhos e de um piropo pouco discreto. O Rochinha não gosta nada daquele abuso e permanece todo o tempo com ar carrancudo e de poucos amigos de volta da máquina de café, não disfarçando o seu incómodo. Aquele happening (o termo é do Sérgio Patinha, que compara aquela aparição à publicidade dos artistas de um grupo de teatro que passeiam as suas personagens nas ruas da cidade) não dura mais do que um quarto de hora, mas todos aqueles que estão no snack bar que fica por baixo daquele que um dia foi o telhado do gato Esteves são tomados por uma excitaçãozinha ao ver aquelas mulheres de decote e saia provocadora e perfume barato. Estão longe de ser belas ou formosas, para usar linguagem mais suave, algumas não disfarçam a falta de dentes ou a pele rugosa, mas porque todos sabem o que são arredondam-se-lhes os olhares e prosperam as libidos.
Quando partem, o velho Leandro Carrascão, armado, como sempre, em vasto conhecedor de todas as cousas do mundo, fica a corrigir o Saul, jovem mais imberbe que agora deu em frequentar o snack -bar por esta hora e que tinha apelidado de putas as senhoras! “Quais putas qual carapuça!”, argumenta o Leandro Carrascão, “aquilo são alternadeiras, que é coisa muito diferente…”
E pouco a pouco, todos os que vieram assistir ao happening vão saindo, quem sabe se para o lugar do verdadeiro espectáculo. O Rochinha continua toda a noite com o seu mau humor. É verdade que as vendas aumentaram, há mais clientela e as libidos prósperas apelam ao consumo, mas anda desconfortável com aquelas visitas. E depois há o piscar do olho com piropo a acompanhar atirado à Julinha.
O velho Joaquim Lobo deixa que tudo se acalme para nos contar – a mim e ao Sérgio Patinha - uma velha história. Não é de muitas conversas este Joaquim Lobo. E também não é das nossas idades, pois já leva uma vida bem contada, mas gosta de connosco acamaradar, mais para nos ouvir do que para falar. Não tem muitas opiniões sobre como vai o mundo, e quando fala é quase sempre para contar algo que um dia se passou lá nas terras de onde ele veio, que nunca conseguimos muito bem entender quais são, que o Joaquim foge ao tema com vagas descrições e nós também não o queremos importunar, cada um sabe de si e o governo sabe de todos, é para isso que tem polícias, finanças e escutas telefónicas.
Tudo aconteceu a um amigo dele, homem com algumas posses que derivavam dos seus negócios em cabeças de gado. Este seu amigo – de que não nos quis dizer o nome -, tinha, no entanto, os seus pontos fracos: era um viciado nas meninas, fossem putas ou alternadeiras. Ao que parece esse vício viera-lhe quando a sua própria mulher o deixara, a ele rico lavrador, e fugira com um maltês de má pinta que por ali passara. Nem a filha levara, a desavergonhada!, e assim ficou este seu amigo com uma rapariguita a seu encargo e que era a menina dos seus olhos. Ora acontece que o lavrador começou a desbaratar a sua fortuna nas ditas meninas, e a sua vida, mais a da sua filha, a piorar. Até que um dia o seu amigo vislumbrou a própria filha, muito pouco escondida atrás de um sobreiro, com um dos rapazes com quem costumava negociar lá na casa das meninas ou alternadeiras. Que fosse esse ou não o primeiro ataque do chuleco à preciosidade da rapariga, ninguém ficou a saber, pois o homem em menos de nada desapareceu para parte incerta, sendo que o mais certo (pelo menos é essa a ideia do Joaquim Lobo) é estar debaixo daquele mesmo sobreiro. “Ou nesta rolha de cortiça”, ri o Joaquim Lobo enquanto abre a sua garrafa de tinto.
“E o teu amigo?”, pergunta o Sérgio Patinha.
“Sei lá!” responde o Joaquim Lobo pronto para voltar ao seu habitual silêncio. “Desapareceu lá da terra! Anda por aí”.
Ainda pensei perguntar pela rapariga, mas preferi deixar o seu destino à mercê da nossa imaginação.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caríssimo Amigo

Tenho duas dúvidas que não me largam...

1- Então o telhado já não é o do Gato Esteves? Foi posto na rua? não pagou a renda? mudou para outro poiso? Será que alguém terá cometido a selvejaria de ter atirado o pau ao gato? - Sabes, há aqui uma qualquer história que me passou ao largo, e esta questão tem-me tirado o sono!
Coitado do bicho... Depois de conhecer as mordomias dum lar, terás sido jogado para o relento? Será o dono um desnaturado insensível para com os antigos bichanos domésticos? Não quero acreditar que a chegada a um estado de alma tipo "pré-senil velho jarreta" provoque amores em desamores...?

2- Segunda questão: vejo-me obrigado a coagir o Meu Amigo a transformar estes acepipes literários num repasto digno de um apreciador das letras. Aguardo a pubilicação destas pérolas numa monografia digna dum felino com E grande, de escritor.

E não ponhas o gato ao relento.

Um abraço deste que está sempre contigo,

1: e4-e5
2: f4-aband. (ehehehe)

Fernando Évora disse...

Excelso Gambito de rei,
É um privilégio ter-te entre os leitores e comentadores deste blogue. Respondo pronto às tuas questões:
1- Se bem te lembras, no final de "Como se de uma fábula se tratasse" o Gato Borradeiro retorna ao seu velho quintal de juventude, o tal quintal da Mariana e, no meio de um turbilhão de recordações, pressente o regresso do mauzão do Esteves. Mas depois percebe que já não é o Esteves e antes um pardito que lhe tomou o lugar. Um reles pardito que anos antes lhe tinha jogado as luvas armado em malandreco.
Pressupõe-se, portanto, que o nosso Esteves já não exista. Pelo menos que já não exista naquelas bandas, pois vá-se lá saber o que farão os gatos nas suas outras vidas.
No "telhado do Gato Esteves" já não mora, portanto, o Gato Esteves. Mas o ambiente tasqueiro que lá se vivia nos tempos do Esteves e do Borradeiro continua, um pouco resistente às ofensivas modernizadoras do país.
2- Em relação a esta segunda questão, que entendo como coacção (as palavras são tuas), será tida em conta. Todavia, como deves calcular, no mundo das super-empresas de carácter mafioso em que vivemos, é difícil a sobrevivência de um escritor "independente". Mas hoje, mais do que nunca, quero manter-me "independente". Um dia contarei, em post, algumas das agruras deste sobrevivente lírico. Mas algo é certo: se os anos me trouxeram alguma jarretice, também me foram tirando algum bom comportamento e espírito pacífico que tinha. Este não é mais um tempo de educação, diálogo e comprometimento. É tempo de cerrar fileiras como dizia uma velha música que falava do povo português.
Um grande abraço, jovem Gambito de Rei

Anónimo disse...

Uffa, que fiquei de veras assustado com a verbalização guerreira do meu Amigo! Para um jarreta dito velho, ou um velho dito jarreta, não está nada mal, não senhor!
E eu é que faço as aberturas de combate(escaquisticamente falando)?
Oh meu amigo, comparado contigo, sou um aprendiz de mariscador de conquilha!
Por este andar, ainda te vejo na alta política (sem falsa ironia te digo)!
De resto, bem falta faz este discurso de mudança/progresso de quem é humanista e solidário não se calando nem vergando às injustiças do nosso tempo!
E, talvez porque um ser cívico é um ser político, arrisco a dizer que em termos políticos sei que não teremos visões concordantes em absoluto, mas decerto haverá imensamente mais daquilo que nos une do que o que nos possa separar.
Disse!

Um grande abraço para ti também, que eu vou-me preparar para um final digno de um bom jogador de xadrez que nunca fui.
Bem hajas.

PS (náo é PS, mas sim PS): Tens de me levar a esse ambiente tasqueiro, a mim e à minha Maria, pois também gosto de estar com quem gosta de mim...