quinta-feira, 29 de maio de 2008

Bufos, Boys, Modernos e camisas negras

Alguns historiadores, analistas, psis ou outros especialistas mais ou menos científicos mas não muito ouvidos (porque estas são conversas que não dá jeito a quase ninguém que sejam ouvidas), assinalam a existência em Portugal de uma natural inclinação para a denúncia. Não a denúncia do crime público, diga-se, mas a denúncia dos comportamentos mais perigosos, dos desviantes, dos suspeitos de revolucionarite, dos incómodos, dos travessos. Tal teria uma raiz histórica: a Inquisição e a sua longa permanência em Portugal. A Inquisição cuja instrução do processo assentava precisamente na denúncia. A Inquisição que estimulou sobremaneira essa denúncia ao ponto de ser suspeito o que não denunciava. E, mais recentemente, os 48 anos de Ditadura, com uma polícia política com uma extensa rede de informadores que aproveitou essa propensão histórica tuga para a bufaria (e de que nunca se conseguiu saber quem eram os informadores da PIDE, o que dava, por certo e pelo menos, interessante trabalho sociológico).
Devo dizer que sou tentado a concordar com esta tese. Já percebi, por circunstâncias profissionais do meu microcosmozinhos, que existem mais bufos potenciais (e reais) do que o que se poderia julgar. Não há dúvidas, eles (os bufos) estão no meio de nós, prontos ao seu cochicho, a dar sua informaçãozinha desinteressada, a comunicar o que viram sem querer, o que escutaram por mero acaso, o que não podiam deixar de reparar e dizer a quem de direito, e é só porque não está certo, e assim eu não sou desses, não me confundo com os do reviralho, estou com a ordem. Há demasiados exemplos mesquinhos, e de repugnante textura, na nossa história recente para ignorarmos, ou desvalorizarmos, a sua importância.
Mas há uma outra espécie que reconheço neste país: os modernos da moda. Os sobredotados de um raro poder de análise que repetem os raciocínios dos analistas de televisão. Intermediários que espalham, como quem não quer a coisa, o seu saber pela humilde populaça. Uma espécie de Luíses Delgados de pacotilha, que agora acreditam nas virtualidades do mercado, na inevitabilidade da globalização, na justeza do neoliberalismo - força única capaz de gerar progresso, emprego e bem estar-, na importância metafísica do controlo do défice, nas reformas estruturais, na adaptação do mercado de trabalho aos novos tempos, com a flexibilização e a deslocalização (termos que pronunciam com ar culto e afectado). Revêem-se na modernidade dos nossos governantes, nessa espécie de déspotas iluminados que conduz, finalmente!, o nosso país para o progresso. Os mais velhos destes modernos até já acreditaram na revolução, na luta de classes, no controlo operário. Foram comunistas em 75. Compraram vídeos Beta pouco antes de aderirem ao cavaquismo (os mais tímidos foram para o PS). Fizeram as suas revisõezinhas constitucionais. Note-se que não falo dos boys. Essa é ainda outra espécie. Os boys, por definição, não são muito dados a reflexões políticas e posições públicas. Os boys não têm ideias, têm apenas desejos, querem cargos, ingressar na carreira, fazer despachos, frequentar inaugurações, dar pareceres, comissariar ou - sonho dos sonhos -, decidir do pequeno subsídio. Não passam de lambe-botas. Pode ser que bufem esporadicamente, mas é apenas se puderem tirar partido imediatista da acção, pois sabem que até podem vir a ter de comer do mesmo tacho que o boy do outro partido. Os boys são mais maleáveis, amoralistas, mais burros. Estes modernos, não. São modernos, porque ser moderno é que é, temos os olhos postos no futuro, olhar para trás é uma perda de tempo. Se tivessem vivido nos anos trinta andavam com a camisa negra, porque então era moderno andar-se com a camisa negra dos fascistas, que ser-se fascista era a última palavra da moda, o novo desígnio dos tempos. É que por mais que gritem o valor das suas ideias, as suas ideias não são as deles, são apenas as da moda, sistematicamente impostas pelos senhores que ditam a moda a partir de cima, como se esta última moda fosse o selo das modas, a moda que veio para ficar. Mas depois, passados uns anos, não conseguem rever-se com a roupa que usaram antes. Ficam ridículos com as cabeleiras de Abril ou as golas futuristas dos anos oitenta. Parecem-lhes fotografias estranhas (aquele terei sido eu?). Também estes de agora ficarão ridículos dentro de alguns anos, mas então não quererão ver as suas fotografias. Porque estes modernos não são genuinamente maus e acreditam verdadeiramente na justeza das suas ideias (que, agora, nem são ideias, mas sim verdades incontornáveis, que essa história das ideias e ideologias passou de moda, antes eramos filósofos, agora somos economistas). Nada pedem em troca do seu serviço feito em casa, na rua, no café, no emprego.
E é nos bufos, nos boys e nesta gente modernaça que o luso poder recruta o seu exército, com a vantagem de aos modernos da moda nada ter que dar em troca. E como a moda passa depressa e os tempos passados se vão esquecendo e cuidadosamente apagando da memória colectiva (veja-se a importância dada à História na escola de hoje, olhar para trás é mesmo apenas perder tempo), qualquer dia os senhores do poder trazem de novo a moda da camisa negra, que já se percebeu que vontade para isso não lhes falta.

2 comentários:

Anónimo disse...

Dê cá mais cinco, Évora, já que também embirra com o Delgado!!!

Nos meus sonhos mais lunáticos, este seria um dos alvos das partidas tão irritantes quanto infantis que eu pregaria assim ao jeito da Amélie Poulain, do filme do mesmo nome. Ou então escolhê-lo-ia para alvo português do mais famoso anarquista belga - Noel Godin, o Entartador - que já entartou com asquerosas tartes de (muito) creme as carinhas larocas de dezenas de poderosos mais ou menos peneirentos ou egocêntricos (entre as suas vítimas estão Bill Gates e Nicholas Sarkozy, então ministro francês, além de um número impressionante de estrelas do firmamento mediático-político francófono).

Os Luíses Delgados deste mundo lêem certas folhinhas que eu tb. curto ler, não sem uma dose de masoquismo, mas para chegarmos sempre a conclusões opostas. Folhinhas de escrita irrepreensível e aparentemente muito "fair" no mais puro e impecável estilo que vão beber às mesmas fontes - meia dúzia de universidades e de reservatórios de ideias de renome mundial cujo denominador comum é "provarem" por A+B não haver alternativas credíveis ao sistema.

Figurões que olham com paternalismo e mal disfarçado enjôo para quem objecta: "tá bem mas e a exclusão e o fosso de rendimentos sempre a crescer na razão inversa da crescente riqueza gerada? E o desmantelamento das conquistas sociais dos primeiros sessenta e picos anos do séc. XX...?".

São os modernaços que têm a inteligência (bolas!) de não deitarem muitos foguetes ao triunfo das ideias que defendem, antes as embrulhando no manto do fim das ideologias. Se isto não fosse tão pesado de consequências, até me ria.

Já no que à prática da denúncia diz respeito, preferia que os Portugueses se destacassem na denúncia dos crimes públicos como a violência doméstica e os atentados contra o ambiente, por exemplo. Ficar-nos-ia bem aprofundar a cidadania desta maneira. Embora reconheça que isto se confunda facilmente com delacção.

É verdade que a histórica concentração de bufos autênticos no nosso território merece ser mais estudada mas, segundo o meu pai, havia meia dúzia de categorias bem presentes neste grupo infame que eu resumiria, para não ferir susceptibilidades, como massas de empregado(a)s subalterno(a)s perfidamente deixado(a)s a vegetar na pobreza e na ignorância pelo salazarento regime, presentes em todos os patamares das esferas social e profissional.

O que assusta é a mudança na natureza dos ditos cujos. Se calhar antigamente eles eram mais alienados que outra coisa. Os de hoje são mais perigosos pois têm a noção exacta do que fazem. Com estes, não há que ter contemplações. Há que desmascará-los.

É por estas e por outras que fico verde de raiva quando penso que o velho perverso morreu consolado, com a solidez da obra feita.

Abraço. Alexandra Lobão

Luís Bonito disse...

Caro Fernando Évora:
Hoje aqui na Alemanha fala-se sobre o caso de um deputado do partido Die Linke (Os da Esquerda) que pertenceu à STASI da ex-RDA. O caso já era conhecido desde 1998 mas agora surgiram novas informações que comprovam que o dito deputado terá sido mesmo espião.
O antigo Ministério da Segurança do Estado da ex-RDA tinha em 1989 (quando foi dissolvido), 91 mil funcionários oficiais e cerca de 100 não-oficiais. Ou seja, quase um total de 200 mil.
Considerando a população total da actual Alemanha em cada 400 habitantes poderá haver um que foi (é/será?) bufo. É um número incrível.
Enfim, como dizia o meu pai, a corja é a mesma. Talvez o mais interessante é que o caso aqui não passa com indiferença e lhe é dada a relevância pelos media e pelas pessoas. Fala-se discute-se, mas não se encolhem os ombros.
E nós, alguma vez foram feitas as contas? Quantos bufos/informadores havia?
Concordo contigo. Tem que se rebuscar na História para se entenderem melhor esses hábitos enraizados na genética do povo.
E o pior é que esse jeito para a denuncia podia ser canalizado para bons fins: por ex. denunciar à policia um gajo que vai a 200 à hora na auto-estrada em zigzag, ou outras patifarias que são crime, mas o normal é virar-se a cara para o lado e fingir que não se passa nada.
Como sempre gostei de ler o que escreves.
Continua. Um grande abraço para ti!