domingo, 4 de maio de 2008

Debaixo do telhado que um dia foi do gato Esteves: o meu amigo Sérgio Patinha e a manif para a legalização da cannabis.

Quando hoje entrei no snack-bar da Julinha – o tal que fica debaixo do telhado que um dia foi do Gato Esteves -, deparei-me com o meu amigo Sérgio Patinha a folhear macambúzio o jornal. Estava com uma ponta de irritação sorumbática. Pensei que fossem as habituais notícias do futebol que o costumam deixar chateado. Mas não, desta vez era uma simples reportagem de uma manifestação pela legalização da cannabis que teve lugar ontem, em Lisboa.
Conheço o Sérgio Patinha há muitos anos. Desde a nossa adolescência. O Sérgio era um rapaz generoso e esbelto, um sonhador do estilo negligente muito popular entre o sexo feminino. Usava brinquinho na orelha, roupas vagamente hippies. Passou uma fase de esquerdismo revolucionário e outra de paz e amor. Casou cedo, descasou não muito tarde, editou uns poemas numa fanzine, foi professor quando não havia quem o fosse, explorou um bar que era um café-concerto, organizou espectáculos musicais e filmes com debate. Sempre o vi esperançado e sonhador ou, pelo menos, habituei-me a vê-lo sempre assim. Mas desde há um par de anos que tudo nele parece ter mudado. Talvez seja a idade, acontece com todos nós. É que o Serginho parece ter sido derrotado pelo tempo. Anda sempre chateado, a queixar-se do governo, dos partidos, da democracia, o que eu devia era ter emigrado, e da globalização, dos americanos, da televisão, dos jornais, dos neoliberais. Quem diria que o Sérgio Patinha se viria a transformar num velho jarreta sempre a falar mal dos novos tempos e, sobretudo, do porvir.
Agora era com esta história da manifestação pela cannabis. Diz-me ele:
"Se havia coisa que eu não tinha dúvidas há vinte anos atrás era de que a cannabis hoje seria legal. Sempre disse que a primeira coffe shop em Portugal seria minha. Era, e ainda é hoje, tão claro para mim que não há razões para a marijuana e o haxixe não se poderem vender publicamente. E uma questão de liberdade pessoal. A invocação das drogas leves levarem às pesadas é pura demagogia. Se assim fosse metade da minha geração era toxicodependente. Pensava que a única força que impedia a legalização da cannabis era a dos próprios traficantes. Mas julgava que esses acabariam derrotados. Afinal, e mais uma vez, parece que estava enganado. Veio um período do politicamente correcto e hoje andam todos a mascararem-se de moralistas com complicados exercícios de raciocínio. Ai, drogas não! sejam elas quais forem! E o rebanho acena a cabeça, não quer saber, comamos apenas a ração que o pastor nos dá. Hoje estamos mais próximos de proibir o tabaco, o álcool, o café, quem sabe um dia o chocolate, do que legalizar o charrinho. E quem é que os tem no sítio para defender publicamente a sua legalização? Só os gajos novos e mais meia dúzia de líricos. Olha para ti…"
Pois é, pensei, eu não tenho coragem para defender publicamente a sua legalização, fica mal, sou um professor, os miúdos, é complicado, compreende-se… mas o Sérgio não quer saber das minhas desculpas.
"E depois agora há aquelas drogas todas feitas em laboratórios, e outras mais sociais."

Claro que o Sérgio era contra as drogas dos novos tempos que acusava de, por interesses de mercado global, estarem a forçar a ilegalidade das outras.

"Descriminaliza-se: agora pode-se fumar um charrinho. Mas não se pode comprar, nem dizer que se fuma. E continua-se a ter que procurar os ditos cujos com os homens do tráfico que depois lavam o dinheiro sabe-se lá onde… E os impostos? Eu pago o meu IVA, o meu IRS, um balúrdio de imposto sobre combustível, e o pessoal que ganha com o tráfico, nicles…"

E lá continuou o Sérgio com as suas lamentações contra o establishment e o governo e esta porra toda que o castra, diz ele.
“É que com o mundo assim, também não apetece a ninguém fumar um charrinho…”, conclui, a deitar contas aos anos em que não toca em tal coisa.

E eu fico a pensar que o Sérgio tem razão. É tudo uma mera questão de liberdade pessoal e está mais do que visto a cannabis não sendo inofensiva (se o fosse, quem a fuma apenas beberia água destilada) não comporta perigos tão imensos que justifiquem a sua ilegalização. E assim dei por mim a escrever publicamente a minha opinião, não me vá o Sérgio acusar de não os ter no sítio.

4 comentários:

Anónimo disse...

Prezado Évora (bonito nome),

Esta incursão é, antes de tudo, pretexto para dizer ao Gato Esteves que ele tem em mim uma candidata a sua protectora ou simples amiga e, em minha casa, refúgio potencial. Isto porque, além de apreciar, logo à partida, a condição de felino doméstico deste personagem, enterneço-me com a sua visão lúcida mas tolerante (sem hard feelings, NÃO SEI COMO ELE CONSEGUE!!) da crueldade, ainda por cima gratuita tão presente na vida em sociedade. Tenho até a pretensão de ter encontrado talvez não "a tal" mas pelo menos "uma" moral da história. Só que fecho-me em copas para não influenciar o escritor, que pelos vistos ainda não a encontrou.

Já quanto aos temas das suas duas últimas crónicas, Fernando, não resisto a meter o bedelho: na manif pela cannabis vejo nem mais nem menos que um sinal de saudável, tranquilizadora e banal normalidade do meu país.

Cada vez que tenho a notícia de uma grande manif de profs (ou de outro extenso grupo social), ingleses agora, portugueses há pouco, gregos anteriormente (neste caso, a dita cuja degenerou em confrontos com a polícia de choque em Atenas), a primeira coisa que me vem à cabeça é o sonho, em mim recorrente, de ver multiplicadas por essa Europa fora, por esse mundo fora, manifs transnacionais a favor de causas comuns ou afins. Dito de outro modo: a tradução em actos do sonho da união de trabalhadores na luta pacífica e leal por melhores condições laborais e por melhores resultados nesta economia mundial sem fronteiras. Tratar-se-ia tão somente de pôr em prática os métodos que já são aplicados pelas internacionais do crime organizado, do capital, das élites políticas (vulgo governos).

Saudações da Alexandra Lobão, extensíveis ao desconsolado Sérgio Patinha

Fernando Évora disse...

Cara Alexandra Lobão (também belo e sugestivo apelido zoológico que faz esquecer a ferocidade predadora do bicho, transformando-a em bonacheira e anciã sabedoria cruzada com a matreirice da comadre raposa),

Agradeço a "incursão" vinda dessa capital europeia e transmititrei a oferta de hospitalidade ao Esteves e as saudações ao desconsolado Sérgio Patinha.
E que o sonho perdure e norteie sempre a luta dos homens (não a conheço, mas presumirei que fará jus ao nome lutador de Lobão em consonãncia com a personalidade de outra Lobão, incapaz de calar o que lhe vai na alma).
Aproveito igualmente para felicitar pelo 8 de Maio, dia da Vitória.
E obrigado por me alimentar o ego,

Fernando Évora

Fernando Évora disse...

Sou eu de novo!
Apenas para referir que o erro de acentuação no comentário anterior resultou (consonância) de um mau teclar e não de confusão com o novo acordo ortográfico. Ora não consegui descobrir como o poderia alterar, pelo que achei mais correcto postar de novo...

Anónimo disse...

Olá a todos

Caro Gato:
Como dizia a minha avó de Cuba ("mas da Cuba boa!"), deixa-te de pantominices, tá bem? Como foste capaz de tratar assim um teu Amigo?

Ná, assim não. Nem quis acreditar no que li.
Não tenho o prazer de conhecer o amigo do meu Amigo, mas se é amigo do meu Amigo, meu Amigo é. Direi mesmo mais: se este amigo é coetâneo da sua (dele, do Gato Esteves) adolescência, mais à vontade me sinto para mandar uma pedrada para este telhado, e, de preferência, com uma pedra das boas, das pesadas... enfim...adiante

Sendo assim, como é que o Autor tem o desplante e o desavergonhamento de chamar, a ele próprio, e a todos nós, ainda jovens de meia idade, se tanto, de «velho jarreta»????
Vai lá chamar de velha jarreta à tua avó torta, sim?
Bem, já disse.
Já estou mais aliviado, que esta coisa da escrita não parece mas alivia. Com isto tudo, já me sinto mais leve, e por isso vou lanchar, para compensar este vazio.
Era só isto. Fiquem bem!
Jarreta... jarreta.. Olha lá, vai pentear macacos, se te sentes velho, tá bem?