Alguns historiadores, analistas, psis ou outros especialistas mais ou menos científicos mas não muito ouvidos (porque estas são conversas que não dá jeito a quase ninguém que sejam ouvidas), assinalam a existência em Portugal de uma natural inclinação para a denúncia. Não a denúncia do crime público, diga-se, mas a denúncia dos comportamentos mais perigosos, dos desviantes, dos suspeitos de revolucionarite, dos incómodos, dos travessos. Tal teria uma raiz histórica: a Inquisição e a sua longa permanência em Portugal. A Inquisição cuja instrução do processo assentava precisamente na denúncia. A Inquisição que estimulou sobremaneira essa denúncia ao ponto de ser suspeito o que não denunciava. E, mais recentemente, os 48 anos de Ditadura, com uma polícia política com uma extensa rede de informadores que aproveitou essa propensão histórica tuga para a bufaria (e de que nunca se conseguiu saber quem eram os informadores da PIDE, o que dava, por certo e pelo menos, interessante trabalho sociológico).
Devo dizer que sou tentado a concordar com esta tese. Já percebi, por circunstâncias profissionais do meu microcosmozinhos, que existem mais bufos potenciais (e reais) do que o que se poderia julgar. Não há dúvidas, eles (os bufos) estão no meio de nós, prontos ao seu cochicho, a dar sua informaçãozinha desinteressada, a comunicar o que viram sem querer, o que escutaram por mero acaso, o que não podiam deixar de reparar e dizer a quem de direito, e é só porque não está certo, e assim eu não sou desses, não me confundo com os do reviralho, estou com a ordem. Há demasiados exemplos mesquinhos, e de repugnante textura, na nossa história recente para ignorarmos, ou desvalorizarmos, a sua importância.
Mas há uma outra espécie que reconheço neste país: os modernos da moda. Os sobredotados de um raro poder de análise que repetem os raciocínios dos analistas de televisão. Intermediários que espalham, como quem não quer a coisa, o seu saber pela humilde populaça. Uma espécie de Luíses Delgados de pacotilha, que agora acreditam nas virtualidades do mercado, na inevitabilidade da globalização, na justeza do neoliberalismo - força única capaz de gerar progresso, emprego e bem estar-, na importância metafísica do controlo do défice, nas reformas estruturais, na adaptação do mercado de trabalho aos novos tempos, com a flexibilização e a deslocalização (termos que pronunciam com ar culto e afectado). Revêem-se na modernidade dos nossos governantes, nessa espécie de déspotas iluminados que conduz, finalmente!, o nosso país para o progresso. Os mais velhos destes modernos até já acreditaram na revolução, na luta de classes, no controlo operário. Foram comunistas em 75. Compraram vídeos Beta pouco antes de aderirem ao cavaquismo (os mais tímidos foram para o PS). Fizeram as suas revisõezinhas constitucionais. Note-se que não falo dos boys. Essa é ainda outra espécie. Os boys, por definição, não são muito dados a reflexões políticas e posições públicas. Os boys não têm ideias, têm apenas desejos, querem cargos, ingressar na carreira, fazer despachos, frequentar inaugurações, dar pareceres, comissariar ou - sonho dos sonhos -, decidir do pequeno subsídio. Não passam de lambe-botas. Pode ser que bufem esporadicamente, mas é apenas se puderem tirar partido imediatista da acção, pois sabem que até podem vir a ter de comer do mesmo tacho que o boy do outro partido. Os boys são mais maleáveis, amoralistas, mais burros. Estes modernos, não. São modernos, porque ser moderno é que é, temos os olhos postos no futuro, olhar para trás é uma perda de tempo. Se tivessem vivido nos anos trinta andavam com a camisa negra, porque então era moderno andar-se com a camisa negra dos fascistas, que ser-se fascista era a última palavra da moda, o novo desígnio dos tempos. É que por mais que gritem o valor das suas ideias, as suas ideias não são as deles, são apenas as da moda, sistematicamente impostas pelos senhores que ditam a moda a partir de cima, como se esta última moda fosse o selo das modas, a moda que veio para ficar. Mas depois, passados uns anos, não conseguem rever-se com a roupa que usaram antes. Ficam ridículos com as cabeleiras de Abril ou as golas futuristas dos anos oitenta. Parecem-lhes fotografias estranhas (aquele terei sido eu?). Também estes de agora ficarão ridículos dentro de alguns anos, mas então não quererão ver as suas fotografias. Porque estes modernos não são genuinamente maus e acreditam verdadeiramente na justeza das suas ideias (que, agora, nem são ideias, mas sim verdades incontornáveis, que essa história das ideias e ideologias passou de moda, antes eramos filósofos, agora somos economistas). Nada pedem em troca do seu serviço feito em casa, na rua, no café, no emprego.
E é nos bufos, nos boys e nesta gente modernaça que o luso poder recruta o seu exército, com a vantagem de aos modernos da moda nada ter que dar em troca. E como a moda passa depressa e os tempos passados se vão esquecendo e cuidadosamente apagando da memória colectiva (veja-se a importância dada à História na escola de hoje, olhar para trás é mesmo apenas perder tempo), qualquer dia os senhores do poder trazem de novo a moda da camisa negra, que já se percebeu que vontade para isso não lhes falta.
Devo dizer que sou tentado a concordar com esta tese. Já percebi, por circunstâncias profissionais do meu microcosmozinhos, que existem mais bufos potenciais (e reais) do que o que se poderia julgar. Não há dúvidas, eles (os bufos) estão no meio de nós, prontos ao seu cochicho, a dar sua informaçãozinha desinteressada, a comunicar o que viram sem querer, o que escutaram por mero acaso, o que não podiam deixar de reparar e dizer a quem de direito, e é só porque não está certo, e assim eu não sou desses, não me confundo com os do reviralho, estou com a ordem. Há demasiados exemplos mesquinhos, e de repugnante textura, na nossa história recente para ignorarmos, ou desvalorizarmos, a sua importância.
Mas há uma outra espécie que reconheço neste país: os modernos da moda. Os sobredotados de um raro poder de análise que repetem os raciocínios dos analistas de televisão. Intermediários que espalham, como quem não quer a coisa, o seu saber pela humilde populaça. Uma espécie de Luíses Delgados de pacotilha, que agora acreditam nas virtualidades do mercado, na inevitabilidade da globalização, na justeza do neoliberalismo - força única capaz de gerar progresso, emprego e bem estar-, na importância metafísica do controlo do défice, nas reformas estruturais, na adaptação do mercado de trabalho aos novos tempos, com a flexibilização e a deslocalização (termos que pronunciam com ar culto e afectado). Revêem-se na modernidade dos nossos governantes, nessa espécie de déspotas iluminados que conduz, finalmente!, o nosso país para o progresso. Os mais velhos destes modernos até já acreditaram na revolução, na luta de classes, no controlo operário. Foram comunistas em 75. Compraram vídeos Beta pouco antes de aderirem ao cavaquismo (os mais tímidos foram para o PS). Fizeram as suas revisõezinhas constitucionais. Note-se que não falo dos boys. Essa é ainda outra espécie. Os boys, por definição, não são muito dados a reflexões políticas e posições públicas. Os boys não têm ideias, têm apenas desejos, querem cargos, ingressar na carreira, fazer despachos, frequentar inaugurações, dar pareceres, comissariar ou - sonho dos sonhos -, decidir do pequeno subsídio. Não passam de lambe-botas. Pode ser que bufem esporadicamente, mas é apenas se puderem tirar partido imediatista da acção, pois sabem que até podem vir a ter de comer do mesmo tacho que o boy do outro partido. Os boys são mais maleáveis, amoralistas, mais burros. Estes modernos, não. São modernos, porque ser moderno é que é, temos os olhos postos no futuro, olhar para trás é uma perda de tempo. Se tivessem vivido nos anos trinta andavam com a camisa negra, porque então era moderno andar-se com a camisa negra dos fascistas, que ser-se fascista era a última palavra da moda, o novo desígnio dos tempos. É que por mais que gritem o valor das suas ideias, as suas ideias não são as deles, são apenas as da moda, sistematicamente impostas pelos senhores que ditam a moda a partir de cima, como se esta última moda fosse o selo das modas, a moda que veio para ficar. Mas depois, passados uns anos, não conseguem rever-se com a roupa que usaram antes. Ficam ridículos com as cabeleiras de Abril ou as golas futuristas dos anos oitenta. Parecem-lhes fotografias estranhas (aquele terei sido eu?). Também estes de agora ficarão ridículos dentro de alguns anos, mas então não quererão ver as suas fotografias. Porque estes modernos não são genuinamente maus e acreditam verdadeiramente na justeza das suas ideias (que, agora, nem são ideias, mas sim verdades incontornáveis, que essa história das ideias e ideologias passou de moda, antes eramos filósofos, agora somos economistas). Nada pedem em troca do seu serviço feito em casa, na rua, no café, no emprego.
E é nos bufos, nos boys e nesta gente modernaça que o luso poder recruta o seu exército, com a vantagem de aos modernos da moda nada ter que dar em troca. E como a moda passa depressa e os tempos passados se vão esquecendo e cuidadosamente apagando da memória colectiva (veja-se a importância dada à História na escola de hoje, olhar para trás é mesmo apenas perder tempo), qualquer dia os senhores do poder trazem de novo a moda da camisa negra, que já se percebeu que vontade para isso não lhes falta.