quarta-feira, 4 de junho de 2008

O marco da educação e a confusão entre qualificação e certificação

Leio uma notícia do dia: “a falar de improviso no Fórum Qualificação 2008, no Centro de Congressos de Lisboa, o nosso primeiro-ministro afirmou que o combate a prazo às desigualdades faz-se pela melhoria do nível de qualificação dos cidadãos, área em que disse que a política educativa do Governo já deixou um marco” ( a notícia é da lusa).
Ora ninguém duvida que este governo deixou um marco na educação. E que esse marco, ao contrário dos elementos tão do agrado de José Sócrates, não é apenas estatístico. É um verdadeiro marco, daqueles que, infelizmente, perdurarão por muitos anos. Com algumas semelhanças com os marcos miliários, diga-se: é um marco de pedra, material resistente e duradoiro, de difícil remoção; marco miliário de forma um tanto bruta e com inscrições em latim de difícil compreensão para aqueles a quem escapa a erudição. E tal como muitos dos marcos miliários romanos da actualidade, o marco está lá, mas a estrada escondida.
Mais à frente reza assim a prelecção sapiente do salvador da pátria do século XXI: “Se nós queremos melhorar a igualdade em Portugal, temos de melhorar a qualificação dos portugueses”. Completamente de acordo! Devemos lutar para qualificar os nossos cidadãos, pois os cidadãos não qualificados, os cidadãos ignorantes, a amálgama de analfabetos funcionais, embrutecidos, explorados, asfixiados pela dívida, a quem continuamente se culpa pela falta de produtividade e a quem se pede sacrifícios pelo défice, pela globalização, pelo estádio de futebol e pelo TGV, a quem se diz que a precariedade e o sub-emprego é o melhor para a economia do país e do mundo, o caminho certo para a felicidade do homem, essa massa de cidadãos, se desqualificados da sua qualidade de cidadãos, transformam-se em meros súbditos dos tempos anteriores à Revolução Francesa. E serão súbditos facilmente governáveis a bel-prazer da máfia que tomou conta do poder económico e político com o seu exército de opinion makers, de falsos jornalistas e de boys parasitas. Mais à frente Sócrates, na sua célebre objectividade demagoga, confunde a qualificação com a certificação: “José Sócrates advogou a seguir a tese de que as desigualdades essenciais, traduzidas sobretudo nas diferenças de rendimentos, «resultam principalmente entre aqueles que têm ou não têm o nono ano de escolaridade».” Quer dizer que se todos tiverem o nono ano ficamos mais iguais? Mesmo que esse nono ano nada queira dizer? Mesmo que com o nono ano não se saiba o que diz um texto de 2 linhas, ou não se saiba quantos são 10% de 100? mesmo que com muito mais do 9º ano não se saiba se é o PS ou qualquer outro partido que governa Portugal? Basta que se certifique e, pimba!, qual varinha de condão, a desigualdade acabou! Basta ir a uma exploração agrícola e pôr um carimbo num burro a dizer “cavalo”, para que o burro passe a ser cavalo e possa participar nas touradas e provas de equitação.
A confusão entre qualificação, certificação e truque estatístico em educação é, aliás, célebre, e não pertence apenas ao nosso primeiro. Veja-se o caso inglês (ainda há pouco tempo apontado por um dirigente intermédio - um coordenador educativo regional - como o modelo inspirador da nossa reforma) e, a esse propósito, o recente artigo do Guardian:
( http://education.guardian.co.uk/schools/story/0,,2283459,00.html)
Claro que o nosso primeiro-.ministro se pode orgulhar de ter deixado um marco na nossa educação: a escola transformou-se numa massa pastosa de professores mal dispostos e atarefados com o seu trabalho burocrático, a ler a nova legislação, a completá-la, a elaborar relatórios, regulamentos, regimentos, actas (e quantas vezes são estas actas admiráveis obras de ficção). A escola deixa de estar organizada em torno do aluno. Está organizada em torno da burocracia que escamoteia a realidade. Porque na realidade a escola vai-se transformando num mero depositário de crianças durante o horário de trabalho dos pais. Onde se vai deixando de ensinar, onde não crescem cidadãos, porque vai ficando difícil ensinar, porque todos passam, porque é fácil conseguir o certificado que garante o combate à desigualdade… (aliás, os resultados estão à vista com a polémica do relatório da evolução das desigualdades). Já o disse e repito-o: nos anos trinta em Portugal advogava-se que a escolaridade não era importante, pois se tinham sido produzidas belas obras de literatura quando 90% do povo era analfabeto (frase pronunciada na Assembleia Nacional); hoje defende-se que todos devem ir à escola, mas que aquilo não sirva para ensinar nada. Que fiquemos certificados (sempre fomos um país que gostou tanto dos títulos, eis o exemplo dos dirigentes), mas não qualificados como cidadãos. A diferença é que antes se confessava a desnecessidade da educação, que o poder ficasse para as elites.
Com este aniquilamento da escola pública, tender-se-á, de facto, para a redução das desigualdades na sociedade portuguesa uma vez que se esbaterá a diferença entre aqueles que frequentam a escola pública: a classe média e os mais pobres. Seremos juntos o novo proletariado do século XXI, que se quer servil, ignorante e conformado.

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