segunda-feira, 23 de junho de 2008

Objector de consciência

Num simpático comentário aqui deixado, a leitora Alexandra Lobão identificou-me como anarquista. Tinha as suas razões, e a sua dedução estava mais que correcta, já que eu me tinha referido a uma frase que gostava de pintar nas paredes dos cemitérios algarvios, frase essa muito querida dos anarquistas (“mortos da vala comum, ocupai os jazigos).
E ao ler esse seu comentário, eu que já tanto fui, pus-me a matutar no que seria agora.
Quando foi do 25 de Abril era eu pouco mais do que uma criança. E benfiquista. Ora para chatear o meu padrasto, que era socialista e do Sporting, entendi que devia ser comunista. Até por uma questão de cor, já que agora podia dizer que o Benfica vestia de vermelho e não de encarnado, e sempre preferi a sonoridade da palavra vermelho (fica tão bem em pronúncia alentejana...). Nunca fui militante, mas levei aquilo de ser comunista a sério: ia às festas da amizade, lia o Avante (e, mais tarde, “o Diário”), andava amiúde de autocolante ao peito, tinha um poster do Lenine em casa e cheguei a comprar “o capital” (mas confesso que só li o “Manifesto do Partido Comunista”).
Quando a adolescência arribou de forma mais imperativa, dei com aquela frase dos “mortos da vala comum” e, numa ânsia de gritar a beleza que lhe achei, desatei a escrevê-la nas paredes dos cemitérios. Comecei por Faro, mas tinha o objectivo de o fazer em todo o país. Acontece que fui apanhado com as tintas na mão em Olhão e só me safei da coça porque fui identificado pelo coveiro, velho conhecido do meu pai (como já devem ter percebido, fui criado por minha mãe, mas mantive sempre relações com o meu pai, esse sim, homem de actos corajosos já no tempo da outra senhora, ao que parece tão subversivo quanto este coveiro). O meu pai parece ter ficado divertido e orgulhoso com a revelação do seu filho e, tendo feito a mesma associação de ideias que trinta anos depois viria a fazer a Alexandra Lobão, resolveu oferecer-me uma vasta literatura em que pontificavam Proudhon e Bakunine. A essa li-a com cuidado, pois tinha acabado de descobrir que era anarquista, epíteto reservado apenas a alguns iluminados. Nesse período passava as tardes (na altura a escola era só de manhã, se calhar éramos mais ignorantes do que as crianças de hoje em dia que passam os dias na escola e não têm furos, isto além de as férias já não serem “férias grandes”, mas isso dava para outro post imenso) na Livraria Sotavento que, lembrar-se-ão os farenses (e não só) das minhas idades, era pertença do Júlio Carrapato, um anarquista dos sete costados.
Mas não fui anarquista, daqueles anarquistas dogmáticos e com tendências terroristas, durante muito tempo. Circunstâncias várias, e de entre elas uma avassaladora paixão pela Eunice (nome fictício, como é conveniente), levaram-me à descoberta de uma vivência de tendências hippies. Deixei crescer o cabelo, comecei a vestir roupas largas e coloridas, a fumar erva e a tomar uns LSD, aprendi a fazer fogueiras na praia, a tocar o stairway to heaven e o blowin in the wind na guitarra, li os livros do Richard Bach, do Carlos Castaneda e até do Lobsang Rampa (valha-me Deus!).
Depois veio a altura serviço militar obrigatório. É claro que eu não queria ir à tropa! Dei-me como objector de consciência. Foi um processo difícil e complicado do ponto de vista burocrático (e uma desilusão para o meu padrasto, que era polícia), mas lá me fizeram a vontade. E foi isso que eu passei a ser: um objector de consciência. Gostava de o proclamar nas conversas de café (sobretudo às moças, que não lhe pareciam dar grande crédito; àquelas que sabiam o que era ser objector de consciência, completava com a informação mais intelectual que era “discípulo de Ghandi”, o que, geralmente, caía muito bem).
O tempo foi passando (bem mais depressa do que me dava conta). O cabelo foi cortado, a roupagem ficou mais convencional. A erva foi dando lugar à cerveja, depois ao Gin Tónico. O Ghandi veio a ser substituído pela admiração ao Olof Palme (que será, em termos teóricos, o mais oposto do anarquismo), e fui ficando um esquerdista mais de valores do de economia. Enfim, seria o clássico processo do envelhecimento e aburguesamento.
A verdade é que deixei de saber o que tinha passado a ser. Apenas algo indefinido, que agora as ideologias estavam fora de moda e tudo o que me interessava era conseguir o maior número de companheiras possível. Era um homem de paixão fácil. Mas os anos iam passando.
Até que li o comentário aqui mencionado e me pus a pensar em tudo isto. E cheguei a uma conclusão, razão deste post. Que sou eu afinal? E descobri-me, depois de algumas reflexões, que sou ainda o que fui: um objector de consciência. Talvez um objector de consciência de tendências anarquistas.
É que depois de nos últimos anos ter defendido um Estado intervencionista, o que me levou a pagar escrupulosamente os meus impostos, defendo agora precisamente o contrário: que deixemos todos de pagar impostos! Trata-se de um imperativo de consciência: não percebo no que se gastam os nossos impostos; tenho a sensação de que apenas servem para perpetuar o capital no poder. Temos de liquidar este género de Estado que de tudo nos vai espoliando. Pago quase um terço do que recebo em IRS, um quinto na maior parte dos produtos que consumo. Um balúrdio no gasóleo e no imposto automóvel. Pensaria que esse dinheiro deveria ir, em primeiro lugar, para a saúde (quem já passou por elas, sabe que é isso o mais importante). Mas afinal a saúde tende para a privatização e por aqui onde vivo vão fechando centros de saúde; se me vir apertado tenho de ir ao particular. Depois seria para a Educação, mas a Educação passou a ser uma miragem e foi convertida num objectivo estatístico (que há de mais feio do que transformar uma criança num número?). E até já ouço muitos professores a dizer que o futuro do ensino é o particular (sei o que digo, a minha actual companheira é professora, e estes tipos estão sempre a falar de escola). Em terceiro lugar a justiça. Não é necessário fazer comentários ao estado da justiça no nosso país. Para que pagamos então os nossos impostos? Por uma questão de consciência, deveríamos deixar de os pagar.
Só que esta objecção de consciência é de bem mais difícil aplicação do que a militar. Se sou ser social, tenho que me sujeitar a ela. Mas digo a alto e bom som:
Fugirei aos impostos sempre que puder.
Preferirei produtos de contrabando ou não declarados.
Não quero facturas ou recibos!.
Prestarei falsas declarações para pagar menos impostos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Como as coisas são, Sérgio Patinha!

Quando você e outros cabeludos de então se interessavam pelas fantasias transcendentais de um Lobsang Rampa - valha-lhe Deus diz bem por isso está perdoado - a adolescente sossegadinha, tímida e idealista mas ingénua que eu era não tinha paciência para ganzas, anarquistas e comunistas pois, basicamente, os únicos que conhecia em Loures (subúrbio deprimente de Lisboa e exemplo acabado do inferno urbano terceiro-mundista onde, logo a seguir ao 25 de Abril, simpatizar com o PSD era, isso sim, um acto subversivo) pareciam-me feios, porcos e maus.

Mais tarde, esta visão limitada seria gradualmente substituída por uma mais romântica e que ainda tenho como válida para muitos deles. Que é a de seres politicamente activos e corajosos de um género relativamente raro no país, heróis da resitência anti-fascista ou arautos da igualdade e fraternidade à maneira de um Jesus Cristo. Por essas e por outras, subsiste em mim uma certa inveja de todos os filhos ou filhas ou sobrinhos... desses heróis. É que a minha família sempre foi oficialmente apolítica com uns toquezinhos comportamentais a atirar para a boa velha ordem salazarista.

Tudo para dizer que ainda não estou disponível para desistir de pagar impostos nem de daí tirar um certo gosto e orgulho. O orgulho do dever moral cumprido que é um defeito de que sempre padeci. Mas a dura e crua realidade obriga-me a reconhecer que o Sérgio tem ou terá toda a razão. E se dúvidas tivesse, elas aumentariam com a leitura de um destaque do Público de hoje, segundo o qual os tecnocratas da OCDE tecem os maiores elogios ao governo Sócrates, encorajando-o a espoliar ainda mais o Português comum.

Pois bem, se a OCDE aplaude eu de certeza absoluta que Não! Nem precisaria de estar informada sobre a realidade nacional, para dizer não, se a OCDE diz sim. Porque, neste areópago, como em todos aqueles que dominam o mundo, a canção é sempre a mesma: "reformar/flexibilizar é preciso, viver não é preciso"

Alexandra Lobão