sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Cem anos de Café Aliança

Ouvi há pouco na rádio que o Café Aliança, em Faro, faz hoje cem anos. O Aliança é, porventura será para sempre, o "meu" café. O meu ideal de café. Senti-me importante por este centenário merecer destaque no jornal nacional da Antena Um. E também senti uma enorme nostalgia do Aliança (quiçá fosse mais nostalgia da minha adolescência), uma enorme vontade de pegar no carro e ir até Faro recuperar tantas recordações...
No Jornal da Antena Um falou-se de figuras históricas que passaram pelo Aliança: José Afonso, que ali terá escrito algumas músicas aquando da sua passagem por Faro quando foi professor, Simone de Beauvoir, Marguerite Yourcenar. Falou-se de outros que eu desconhecia que tinham ido ao Aliança como Almada Negreiros ou Fernando Pessoa (estou desconfiado que quem foi ao Aliança foi Álvaro de Campos, que era de Tavira). Mas faltou recordar-se um dos maiores poetas portugueses do século passado, sempre esquecido pela élite intelectual, e que será aquele que mais ligado estará ao "espírito Aliança": António Aleixo. Recordo tão claramente a história que me contou a minha professora de Português do 1º ano do Ciclo quando falámos do Aleixo (falar do Aleixo no actual 5º ano seria hoje considerado um atentado pedagógico): o Aleixo andava a vender cautelas no Aliança e as diversas mesas tinham por hábito chamá-lo e pedir-lhe que, para sua diversão, fizesse ali uma quadras. Quase como se fosse um artista de circo a fazer umas macacadas. Ora acontece que num desses dias, e na mesa dos doutores, alguém sugeriu que se fizesse o costume. Mas logo um dos doutores, mais pudico, notou que o Aleixo, comido pela doença e pela pobreza, apresentava tão mau aspecto que "parecia um ladrão" e seria melhor deixá-lo só, a vender cautelas. Talvez este observador pertencesse à classe que dominava a cultura deste país e a vai continuando a dominar. Hoje, porventura, arriscar-se-ia a ser ministro socrático. Mas adiante. António Aleixo acabou por ser requisitado para uma mesa que ficava ao lado da tal onde se sentavam os "distintos doutores" e, instado a fazer um poema, terá parodiado os tais doutores pois, como é conhecido, tinha o "ouvido tísico" (a tuberculose acabou por lhe levar a vida, e nesta mesma aula de Português fiquei a saber que os tísicos apuram o sentido da audição). A quadra que lhe saiu foi "a tal":
Sei que pareço um ladrão,
mas há muitos que eu conheço,
que sem parecer aquilo que são,
são aquilo que eu pareço.
Retorno ao Aliança e às minhas memórias. Foi no Aliança que aprendi a jogar xadrez como deve ser; foi lá que conheci o escritor sueco Staffen Ekesson (que aparece em algumas das minhas histórias e que tanto me ensinou sem que disso nos déssemos conta), o Sr. Capitão (que me inspirou uma personagem com o mesmo nome), o Paulino, o Paiões, o Kabay e tantos outros... Foi no Aliança que conheci o cão Alberto, que era o cão dos drogados e que um dia seria o meu Jimmi do "De como se de uma fábula se tratasse". A este propósito recordo que o Aliança tinha - tem ainda, segundo julgo saber -, três portas oficiais. Ora uma vez a carroça da Câmara perseguia o Alberto (cão marginal que apenas ladrava aos carros da polícia - segundo a teadição por ter sido um carro destes que atropelara o seu irmão) e este entrou pelo Aliança adentro pela porta "principal", a que dá para o Jardim. O Alberto, mais lesto do que o habitual, passou por nós, os da zona do xadrez, como uma seta. Pouco depois vi entrar os perseguidores da câmara. Fiquei assustado: o Jimmi iria ser capturado. Levantei-me e verifiquei que todas as três entradas estavam ocupadas pelos da carrinha da câmara. O cerco estava montado. Saí do Café, não queria assistir àquele momento; finalmente aquela espécie de asae dos animais ia conseguir o que há tanto pprocurava. E quando saí vi ao longe, a sair da entrada da Bertrand, a cabecinha do Alberto, a gozar o pratinho do engano dos seus perseguidores, inda não é desta que me caçam...
Por último recordo que no Aliança, por entre as primeiras imperiais, escrevi alguns dos meus primeiros poemas, para sempre perdidos, poemas das desventuras da adolescência.
Senti-me hoje tão feliz ao ouvir o noticiário da Antena Um e a pensar que esses poemas poderiam ter sido rabiscados nas mesmas mesas em que um dia José Afonso escreveu as suas cançoes. Apesar da diferença de génio, haverá uma mesa que nos une. A ele, e não aos doutores que um dia disseram que António Aleixo "parecia um ladrão".

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