domingo, 30 de novembro de 2008

A escola corporativa

Muito se tem chamado “corporativos”, entre outros epítetos mais feios, aos professores. Muitos supostos especialistas e jornalistas dizem que é uma classe particularmente unida sempre pronta a resistir às boas intenções ministeriais (inclusive alguns ministros, como Marçal Grilo – que eu cheguei a ter por pessoa inteligente – falaram deste problema corporativo). E logo os relacionam com o que de pior tem o português: trabalhador pouco produtivo, dado à preguiça e dotado de duvidoso valor moral (lembra-me alguém que na minha infância falava assim dos “pretos”), párias do sistema, espécie de agremiação de chulos que não fazem nenhum e ganham balúrdios. E porque a cambada está bem é que estão unidinhos que é para continuarem a mamar como até aqui. Julgo que Maria de Lurdes Rodrigues comungará desta ideia acerca dos seus tutelados, se bem que temperada com uma linguagem mais moderna e menos vernácula.
E decidiu ser a heroína que vai pôr termo à situação.
Mas a classe docente é muito diversa e sempre esteve longe de ser corporativa. Atente-se nos números de adesão a greves nos últimos anos (sempre a descer até valores extremamente baixos antes do consulado Milú) ou nas manifestações que antes eram pouco participadas. Qualquer um que conheça a escola pública, qualquer pai que tenha seguido a carreira escolar dos seus filhos se terá deparado com um leque extraordinariamente heterogéneo de professores. Nas escolas sempre houve os incansáveis e os que pouco mais do que nada ainda fazem. Os que organizavam, ocupando tempo fora do seu horário, exposições, visitas de estudo, projectos de investigação, iniciativas abertas à escola e à comunidade, que substituíram – e quantas vezes! – os encarregados de educação na sua dádiva de afecto, que resolveram problemas de faltas materiais, que providenciaram soluções para a fome dos seus alunos, que descobriram, denunciaram e, tantas vezes, tiveram que ser eles os principais envolvidos na solução dos casos das vítimas de agressão, abandono, abuso. O papel da escola neste mundo cão em que o país (talvez o mundo) se foi transformando é o de ser quase o último guardião da decência e do humanismo. E será esse um dos problemas do governo: neste novo mundo socratino da deslocalização, da flexibilização, da precariedade, dos grandes horários de trabalho, acaba por cair sobre os professores a tarefa humanista de quem não esqueceu o que é ser criança.
Mas também é verdade que nem todos os professores têm vindo a desempenhar o trabalho como referido no parágrafo anterior. Há aqueles que dão as suas aulinhas –uns melhor e outros um pouco pior -, que vão fazendo os seus testes, cumprindo as suas obrigaçõezinhas burocráticas com afinco e aprumo, enfim, professores que não sendo dotados de grande vocação também não falham no que lhes é pedido. Uns são mais simpáticos, outros muito exigentes, outros assim-assim. E também as nódoas. Claro que as há. Há os que nada fazem a não ser pouco mais que figura de corpo presente nas aulas, que ditam os mesmos apontamentos que há vinte anos, não são capazes de elaborar uma acta, que não conseguem controlar a indisciplina. E a estes, porque são incompetentes, cai geralmente a menor fatia do trabalho comum, e passeiam-se todos lampeiros e despreocupados pelos corredores das escolas. Ainda os há, é certo. Mas devo dizer que ao longo da minha carreira de professor tenho visto uma clara diminuição da sua percentagem. Já desapareceram (ou quase, estou a lembrar-me de um caso que ainda dura), aqueles que estão no ensino como um prolongamento da sua actividade de engenheiro, explicador, advogado ou outra e que para isto não tinham jeitinho nenhum. Já não há os que estão na escola a tapar buracos da falta de professores como acontecia há anos atrás, contrariados por aturarem “putos” em vez de terem outro trabalho mais bem remunerado, com mais estatuto social, menos exigente, menos perigoso.
Ora é verdade que o sistema de avaliação anterior (1) não distinguia os melhores dos piores, ou, pelo menos, não o fazia de forma clara. Mas também é verdade que este não o faz. E se não o faz não serve para nada. Mais: este sistema cria uma nova divisão, decorrente do Estatuto da Carreira Docente, entre professores titulares e simples professores (espécie de badamecos) que tem na sua origem um erro fatal, já que a divisão artificial porá, pôs, como titulares não os melhores, mas aqueles que uma escolha arbitrária decorrente de uns critérios escolhidos pelos humores ministeriais decidiu. E aí começou o sistema de avaliação dar bronca, nascendo torto. Lembro a célebre frase da ministra: “na tropa nem todos chegam a generais”. É verdade, minha senhora. Mas a escola não é a tropa. A tropa tem de estar pronta para situações limite, a cadeia hierárquica é um dos seus pilares que tem que funcionar sem qualquer falha numa situação desse tipo, concordará que semelhante necessidade não se aplica à escola. Que não estaremos interessados em viver numa sociedade que reflicta este regime hierárquico em todas as suas dimensões. E na tropa, suponho eu, a progressão deverá ser, de facto, feita com base no mérito e qualidades de cada um. Uma tropa cuja hierrarquização fosse idealizada pela senhora, estaria condenada ao massacre imediato.
E também lembro a frase tantas vezes repetida que em todas as empresas os profissionais são avaliados. Pois é verdade, minha senhora, mas a escola também não é bem uma empresa, embora a senhora queira fazer dela uma empresa, traduzida em resultados artificiais de aprovações fictícias, como se uma empresa de falcatrua se tratasse, uma daquelas que inventa produtos e vendas e lucros. Porque se esta avaliação fosse aplicada numa empresa, a empresa ruiria em pouco tempo. Não é possível que uma empresa, ou uma qualquer organização, pudesse gastar tanto tempo e energia na sua auto-avaliação. E é isso que está a acontecer, minha senhora: estamos a perder demasiado tempo com tudo isto, estamos a consumir-nos e não a ensinar. Já percebi, já percebemos, que o ensinar não tem assim tanta importância para si, o que a senhora quer não é que os professores ensinem, é que os professores aprovem os seus alunos, é esse o seu sucesso, sucesso medido nas estatísticas de certificação. A escola, minha senhora, não é uma fábrica onde entra um porquinho e sai uma salsichinha; onde entra uma qualquer matéria-prima e sai um profissional de mão-de-obra barata suficientemente estúpido e dócil para não pôr em causa o poder dos poderosos. A escola para mim continuará a ser a chave do futuro, onde entram crianças e são formados cidadãos (que, idealmente, nunca deixarão de ser crianças sonhadoras).
E é esta última a razão principal que nos coloca hoje nas trincheiras adversárias (para usar linguagem castrense que a senhora parece apreciar): é que eu sou pela Escola; a Escola Pública formadora de cidadãos capazes de impedir gente com tiques fascistas de voltar ao poder.

(1) porque havia sistema de avaliação anterior, é mentira quando o primeiro-ministro ou a senhora ministra dizem que não havia avaliação. Eu próprio pertenci a equipas de avaliação do Conselho pedagógico responsáveis pela avaliação de colegas. E nesse âmbito posso dizer que não é verdade que todos subiam de escalão. Alguns houve que não conseguiram, fosse por falta de formação – que era então obrigatória -, fosse por incongruências no seu relatório, fosse por incumprimento de prazos.

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